Campeã Olímpica admite comportamentos bulímicos, e revive debate sobre transtornos alimentares na Patinação Artística
Em entrevista recente ao programa da TV russa Vecherniy Urgant, a campeã olímpica Alina Zagitova, da Rússia, admitiu ter usado práticas consideradas auto-destrutivas para evitar ganho de peso durante o período de competições. Zagitova, de 16 anos também falou sobre suas condições antes do Campeonato Mundial de 2019, e que a instabilidade de suas performances até então—em parte creditadas por ela a oscilações de peso—chegou a fazê-la pensar em abandonar a disputa antes do início: "Eu não queria desgraçar a Rússia". Ela venceu o Mundial, com a liderança em ambos os programas e 237.50 pontos na somatória final.
Sobre o controle rígido de peso, Zagitova alegou ser necessário para execução de técnicas de salto: "Se aumentar o peso na sua mão, você não pode mais saltar". A campeã mundial de 2019 declarou que antes das Olimpíadas de PyeongCheng adotou práticas extremamente rígidas de manutenção do peso, que incluíam se privar de ingerir líquidos: "Eu me pesava três vezes ao dia para não passar de 100 gramas de ganho. Eu estava muito preocupada sobre meu peso e não bebia muita água. Tomava um gole e cuspia fora". E completou, reforçando: "Nosso esporte é complicado. Conforme eu ganho peso a técnica de saltos muda e eu não consigo mais saltar". O comportamento de não ingerir o alimento posto na boca é considerado sintoma grave de bulimia, um transtorno que pode levar a severos danos à saúde e até mesmo à morte, em 4% dos casos.
As declarações de Zagitova causaram preocupações entre internautas, e chegaram em um momento em que o esporte discute abusos de diversas espécies, incluindo a indução de transtornos alimentares. Nos EUA, a principal dupla de dança no gelo júnior, os irmãos Rachel e Michael Parsons anunciou aposentadoria precoce, após Rachel Parsons admitir em carta pública que está em tratamento contra anorexia nervosa. Também nos EUA, o recentemente aposentado patinador Adam Rippon admitiu viver em constante vigilância contra surtos de anorexia, e que no início de 2016, quando venceu o Campeonato Nacional, sobrevivia com uma dieta diária de três fatias de pão integral cobertas com um substituto artificial não-calórico de manteiga e três xícaras de café com sucralose. A dieta rígida pode ter contribuído para Rippon sofrer uma fratura de difícil recuperação no pé esquerdo, que o manteve afastado do esporte por 11 meses. A vencedora do Campeonato Nacional dos EUA de 2016, Gracie Gold, foi forçada a abandonar as competições devido a transtornos alimentares mistos, disforia corporal, compulsão suicida e depressão grave, e hoje vive sob tratamento.
Treinadores nos EUA tem sido acusados de forçar emagrecimento de patinadores, inclusive com o uso de violência psicológica: Rafael Arutyunyan, que era técnico de Adam Rippon e atualmente responde por patinadores famosos como Mariah Bell (EUA), Michal Brezina (República Tcheca), Marin Honda (Japão) e o campeão mundial Nathan Chen (EUA)—que desde 2018 treina mais tempo na pista de gelo da Universidade de Yale do que diretamente com o treinador—foi citado várias vezes por ex-pupilos como responsável por agressões verbais dirigidas sobretudo a atletas mulheres com peso fora do padrão desejado, chamando-as de "vacas" e "porcas".
Casos graves de transtorno alimentar e práticas nutricionais destrutivas também aconteceram na Ásia. Na China, a então promessa Li Zijun foi posta pelos treinadores em um regime semelhante ao descrito por Zagitova durante um ano inteiro, com pesagens surpresa em vários momentos e restrições de dieta que incluíam não beber água e comer apenas um ovo cozido e uma porção pequena de arroz por dia. O regime causou um quase colapso do sistema imunológico de Zijun e crises depressivas que a obrigavam a visitas constantes ao hospital para tratamentos de emergência. Zijun só conseguiu melhores condições ao trocar de base de treinamento e técnicos, ainda assim teve que encerrar a carreira devido a prováveis sequelas de desnutrição. No Japão ficaram conhecidos os casos de Akiko Suzuki e Satoko Miyahara, que sofreram graves danos à saúde por insuficiência alimentar. Suzuki, que foi aconselhada por técnicos a emagrecer para saltar melhor, chegou a pesar 32 quilos, ter um índice de massa corporal (IMC) de apenas 12 pontos e adoecer gravemente no ano de 2003. Ela só conseguiu retomar a carreira competitiva após um ano de intenso tratamento hospitalar e psicológico. Miyahara, sofrendo de osteopenia, com quase nenhuma ingestão de cálcio e peso muito abaixo do ideal teve fraturas de estresse graves em várias partes do corpo desde o final de 2016, e quase teve que se aposentar antes dos 20 anos de idade.
Na Rússia, o caso de Yulia Lipnitskaya ainda é lembrado: em 2017 ela encerrou uma das mais promissoras carreiras da história da Patinação Artística com apenas 19 anos, após sucessivas internações para tratar anorexia nervosa. Segundo ela, o transtorno foi desenvolvido para manter um corpo ideal para competir no nível que público, técnicos e analistas esperavam. A medalhista de prata olímpica Evgenia Medvedeva, que deixou a Rússia para treinar no Canadá em 2018 admitiu ter mantido uma relação inamistosa com alimentos durante os anos em que treinou em Moscou, e que recebia a recomendação de técnicos para "tentar atrasar a puberdade a todo custo" a fim de evitar mudanças físicas e aumento de peso, o que incluía dietas extremamente severas. O processo todo pode ter agravado lesões na coluna que a patinadora sofreu ainda na Rússia e que se tornaram crônicas, impedindo definitivamente alguns movimentos como as piruetas Biellmann e layback. Medvedeva, que ficou com o bronze no Campeonato Mundial de 2019 declarou ter no último ano melhorado a auto-aceitação de corpo e imagem e estar em trabalho para a melhora da condição física dentro de limites possíveis: ela tem reformado as técnicas de patinação de acordo com as mudanças naturais do corpo e adotou um estilo de vida vegetariano saudável.
A base de treinamento do clube russo Sambo-70, o mesmo de Zagitova e onde Medvedeva e Lipnitskaya treinavam é atualmente a maior liderança no mundo em obtenção de resultados na categoria feminina. É lá que treinam três das quatro únicas mulheres que conseguiram completar saltos quádruplos em competição na história da Patinação Artística: a cazaque Elizabet Tursynbaeva, na categoria senior, mais as russas Alexandra Trusova e Anna Shcherbakova, da categoria junior. As três tem sido alvo de diversas especulações quanto às condições reais de saúde e nutrição. O peso das atletas não é divulgado pelo clube, mas especula-se que todas estejam muito abaixo de um limite saudável: rumores dão conta de que Shcherbakova teria um IMC abaixo de 15, o que denotaria uma saúde gravemente ameaçada.
Regimes de alta restrição alimentar e controle rígido de peso todavia não são uma unanimidade nas bases de treinamento de Patinação Artística, e encontram críticos ferozes no meio. O técnico russo Alexei Mishin, que foi treinador de lendas do esporte como Evgeny Plushenko, Alexey Yagudin e Alexei Urmanov, responsável pelo trabalho atual da campeã mundial de 2015 Elizaveta Tuktamysheva, e que também já trabalhou com a italiana Carolina Kostner e na recuperação da chinesa Li Zijun costumava recomendar sobretudo às atletas femininas um especial cuidado em manter uma boa nutrição. Mishin declarou que trabalhar com mulheres é algo que exige atenção redobrada às mudanças naturais inevitáveis, e se isso for ignorado todo o trabalho pode ser posto a perder: "Mulheres são um material delicado, muitos fatores podem afetar os resultados, disposições, sentimentos em competição. Algumas coisas muito sutis podem afetá-las Mais, para a maioria das garotas na puberdade as mudanças são difíceis de resistir". E pôs ênfase em uma alimentação rica e saudável para manter o desempenho, como recomendava constantemente para Zijun: "Você precisa comer coisas melhores, apenas um corpo forte tem energia para saltar".
Outro crítico das restrições extremas é Brian Orser, técnico do Toronto Cricket Skating and Curling Club, do Canadá. Ele, além do trabalho com o bicampeão olímpico Yuzuru Hanyu, do Japão—que apesar da aparência magra faz uma dieta de quase 5 mil calorias diárias e tem buscado um aumento gradual de peso muscular como forma de controlar lesões e problemas de saúde—trabalha também com a russa Evgenia Medvedeva e dois atletas em recuperação de problemas alimentares: o coreano Jun Hwan Cha e a canadense Gabrielle Daleman. Cha, medalhista de bronze do Grand Prix de 2018 ainda estava treinando na Coréia em categoria júnior quando começou a sofrer diversas lesões por conta de fragilidade física provocada por alimentação deficiente. Com um novo programa nutricional, o coreano retomou o desenvolvimento gradualmente, ganhou tamanho e força física: com 1m81 de altura tem conseguido uma surpreendente consistência na execução de saltos quádruplos. Gabrielle Daleman, campeã canadense de 2018, por sua vez começou a ter problemas com anorexia e bulimia ainda durante a pré adolescência por causa de bullying, em uma época que competia como ginasta. Sob um tratamento que talvez dure para o resto da vida, tem se mantido com um corpo saudável e sido uma voz ativa contra agressões em ambiente escolar e de trabalho e em defesa das vítimas de transtornos alimentares, psiquiátricos e de abusos emocionais.
A atual boa forma de Daleman e da medalhista de bronze olímpica Kaetlyn Osmond, também do Canadá valeram elogios de Orser, que as citou como uma inspiração para novas patinadoras em uma entrevista para a TV NBC em 2017: "Kaetlyn e Gabby, acho que elas tem dado para tantas meninas ao redor do mundo a esperança de que elas não precisam ser um graveto. Elas não precisam ter transtorno alimentar. Elas podem ser altas—Kaetlyn é alta, bonita. Elas tem figuras femininas. Tem muitas dessas garotas e mulheres nos eventos que estão provavelmente pensando 'eu posso fazer isso'. Espero que essa seja a mensagem que apareça, porque acho que é importante".
Foto: Reuters
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