Por Flávia Vasconcellos
Quando se trata da participação feminina nos jogos olímpicos, sempre se remete à data de 1900 como a primeira vez das mulheres nas competições esportivas. Porém, as mulheres já competiam desde muito antes na Grécia antiga, apesar de elas terem sido tecnicamente proibidas de participar de eventos atléticos. Como sabemos por meio dos relatos de Pausânias, geógrafo e viajante grego ativo em I d.C., somente os homens podiam participar dos jogos de Olímpia e as parthenoi (jovens virgens) podiam apenas assistir as competições. As gynai (mulheres casadas) não podiam nem assistir e nem presenciar o evento com a ameaça de serem jogadas de penhascos. Mas o mesmo Pausânias relata a história de uma mulher que tinha a ambição de vencer nos jogos de Olímpia. E o fez!
Não chega a ser um espanto que a primeira mulher a vencer nos jogos de Olímpia tenha sido uma espartana da casa real: Cinisca, filha do rei Arquelau II e irmã de dois reis Agis e Agesilau II, provavelmente nascida em 440 a.C. Segundo os comentadores, o nome Cinisca, que significa pequeno cão de caça, deveria ter sido o seu apelido por conta da sua ligação com a caça e com os cavalos. Os nomes da mãe, da irmã e da sobrinha, respectivamente Eupolia (boa nos cavalos), Proauga (luz do relâmpago) e Prolita (a que segue à frente), também refletiam os interesses da linhagem feminina pelo mundo equestre. Após a morte de seu pai, Cinisca herdou vários cavalos e passou a treina-los, o que se presume.
Estima-se que foi apenas por volta de 50 anos que Cinisca finalmente pôde realizar as aspirações de se tornar a primeira mulher vitoriosa nos jogos de Olímpia, tendo sido bicampeã, 396 e 392. Isso provavelmente se deu porque Esparta tinha sido banida dos jogos de 420 a 397 por guerras contra os povos da região de Olímpia, mas logo que o banimento acabou, Cinisca se consagra a primeira mulher a vencer na corrida de quadriga, carro de duas rodas puxado por quatro cavalos. Um exemplo desse carro é o que se vê no topo do Portão de Brandenburgo em Berlim.
A quadriga, precisamos ressaltar, era um artefato de luxo dos mais ricos. Entretanto, não eram esses ricos que domavam os cavalos e muito menos eles que de fato competiam. E o mesmo não foi diferente com Cinisca. Não foi ela quem pilotou a quadriga rumo à vitória, mas seu “jóquei”. A tradição era que os donos dos cavalos se sagravam vitoriosos e eles eram os que ganhavam a mais alta honra daqueles tempos: a coroa feita com os louros da oliveira sagrada do templo; mas quem fazia o trabalho “sujo” eram os jóqueis, ainda como hoje nas corridas de cavalos. Cinisca não pôde entrar no estádio para receber sua coroa, mas pôde adentrar o santuário de Zeus para a cerimônia dos vencedores e também pôde colocar sua imagem no santuário, como acontecia com os outros homens vencedores e ricos.
Temos a notícia de que ela contratou Apeleias de Mégara para fazer uma escultura da sua quadriga, dos seus cavalos, do jóquei e dela mesma em bronze. Mais um feito para ela, pois foi a primeira vez que uma mulher esteve retratada em monumentos por seus feitos em competições pan-helênicas. E a mulher realmente não dava ponto sem nó. Contratou um escultor de uma cidade aliada à Esparta e especialista em figuras femininas para eternizar os seus feitos atléticos no santuário de Olímpia. Pelo que se sabe, ele geralmente retratava as mulheres rezando, o que poderia deixar a pista de que ela pode ter sido retratada dessa maneira em gratidão aos deuses. Pista porque o monumento se perdeu com o tempo. Como em muitos casos de esculturas dedicadas em santuários, o monumento de Cinisca também continha uma inscrição em forma de poesia, um epigrama, único vestígio que restou do monumento e que foi registrado por Pausânias em seu relato e também na coleção de epigramas Antologia Palatina:
Meus ancestrais e irmãos foram reis de Esparta.
Eu, Cinisca, vitoriosa no carro de corrida de cavalos ágeis,
erigi esta estátua. Eu declaro que eu sou a única mulher
em toda a Grécia a ter ganho essa coroa.
Autor desconhecido, Antologia Palatina13.16
Cinisca, portanto, desbravou os jogos de Olímpia e deixou a sua marca como mulher espartana na história. Depois dela, outra espartana foi vitoriosa em corridas de cavalo, Eurileone e em outros séculos, mulheres da realeza de Alexandre, o grande, também foram vencedoras, mas isso deixamos para contar em outro Surto História.
Fica para nós uma reflexão. Embora Cinisca tenha tido seu nome registrado na história por conta dos seus feitos que foram registrados nos relatos de Pausânias e também textualmente amparados por inscrição em pedra, é importante ressaltar que tudo isso provavelmente só foi possível por dois fatores. O primeiro é a importância que Esparta dava aos exercícios físicos. Acreditava-se que a mulher que era forte e se exercitava, gerava fortes guerreiros, então todas as mulheres faziam exercícios. O segundo é a procedência de Cinisca. Ela fazia parte da realeza, ou seja, ela podia driblar as regras e não seria jogada do penhasco caso não as respeitasse. Tudo bem que parece que ela não tinha se casado e nem gerado filhos, o que a deixaria ver a competição como mulher solteira, mas o seu feito só é possível por conta, em parte, da cultura local e também do seu status social. E mais um detalhe para nós, pesquisadores da antiguidade. O registro de seu feito, o epigrama que estava na base da sua escultura, chegou até nós para nos contar o seu feito. Sem ele, não teríamos tido notícia que mulheres teriam já competido e vencido por volta do século V a.C.
A história de Cinisca nos faz refletir também sobre a representatividade da mulher ainda hoje, muitas vezes condicionada à cultura local, ao seu poder aquisitivo e à influência dessa mulher e sua liberdade de escolhas. Os tempos de Cinisca eram certamente outros e muita coisa já conquistamos no esporte, mas muitas barreiras precisam ser quebradas com maiores iniciativas e, sobretudo, criando nossas meninas livres para serem o que quiserem, para praticarem os esportes que quiserem e para simplesmente serem.
foto: British Museum
foto: British Museum
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