Surto História: Maria Irenice Rodrigues, a pioneira apagada

Pioneira nos 800m, Irenice foi apagada da história por confrontar dirigentes militares por melhores condições esportivas

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Irenice Maria Rodrigues seria facilmente mais uma das atletas olímpicas lembradas pela seu pioneirismo, entre os grandes nomes do esporte, se não fosse um porém: ser transgressora e bater de frente com sistema esportivo e político vigente em sua época.

Mulher negra e mineira de Itabirito (MG), Irenice queria na verdade jogar vôlei, mas foi no atletismo que ela despontou nos anos 60, atuando Vasco, Botafogo, Fluminense e Flamengo ao longo da carreira. Em 1967 vieram os seus melhores resultados, quando ela passou a disputar as provas dos 400 e 800m rasos.

Mas tinha um problema na época: a prova dos 800m rasos era proibida para mulheres no Brasil – graças a um decreto-lei instituído em 1941 pelo então presidente Getúlio Vargas, que vetava que mulheres disputassem ‘esportes incompatíveis com sua natureza’. Em 1965, um novo decreto da recém empossada ditadura militar decidiu especificar os esportes: futebol, futsal, futebol de praia, polo aquático, rúgbi, beisebol, halterofilismo, qualquer tipo de luta e provas extenuantes do atletismo.

Ignorando as regras, Irenice foi pioneira na prova dos 800m , se tornando um meio-fundista de qualidade. Foi recordista brasileira e sul-americana e conseguiu o índice para disputar os Jogos Pan-americanos de Winnipeg em 1967, mas não seria inscrita pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Ela então iniciou um movimento de protesto contra o autoritarismo do Conselho Nacional de Desportos com diversos atletas e conseguiu ser inscrita no Pan. Irenice fez um bom papel no Canadá, terminando em quinto com 2m08s56.

Sua atitude acabou chamando atenção do regime ditatorial brasileiro: uma mulher negra e periférica se voltando ao sistema esportivo era extremamente perigoso na visão dos militares da época – que não tolerava atos de rebeldia em nenhum setor. Apesar da vida de Irenice ter ficado mais complicada, ela não esmoreceu.

Após acusar o Fluminense de racismo após ir em uma festa do clube e ser confundida como empregada de algum sócio, migrou para o Flamengo após competir um período como atleta independente. Lá continuou a se desenvolver nos 400m e nos 800m, batendo novamente o seu próprio recorde brasileiro e sul-americano, conseguindo o índice olímpico.

Mas os problemas com o COB continuavam. Ao ‘Jornal dos Sports’, pouco antes dos jogos Olímpicos da Cidade do México, Irenice reclamou do tratamento recebido ao pessoal do atletismo: “Não quero fazer turismo no México. Nós somos humanos e o que pedimos é pouco. Sem treinamento adequado, concentração e alimentação eficaz, não me interessa ir ao México. Prefiro ficar no Brasil a passar vergonha em um país estranho”

Irenice quase foi cortada, mas ela foi ‘perdoada’ e seus apelos fizeram as condições foram melhoradas. Mas este outro gesto contestador deixou Irenice ainda mais ‘marcada’ pelos dirigentes. Uma simples falha seria o suficiente para ser expulsa e ela aconteceu na Vila olímpica da Cidade do México. Acusada de agredir a colega Maria Cipriano, ela foi sumariamente expulsa da delegação e não pode disputar as provas dos 400m e dos 800m, onde tinha boas chances de chegar nas finais. Só ela foi desligada.

No retorno ao Brasil, ela explicou o ocorrido ao ‘Jornal dos Sports’. Irenice confirmou a briga, dizendo que tentava usar a pista fora do horário permitido, tentando convencer o porteiro do estádio e que Maria ‘dedurou’ Nelson Prduêncio, que tinha burlado a segurança e já treinava: “Não gostei de sua atitude. Como ela falou alto, pedi que se calasse. Como ela respondeu, acabamos nos desentendendo. A briga só acabou no vestiário.”

A expulsão a deixou quase dois anos no anonimato esportivo. Chegou a voltar às competições representando o Brasil em 1970, mas sem o mesmo protagonismo. Sempre contestadora, Irenice foi afastada novamente da seleção, desta vez pra sempre, quando em um protesto em 1971, foi andando ao invés de correr a prova, contra o tratamento recebido pelos atletas. Ela continuou competindo por clubes até 1976, e ignorada pela CBD e pelo COB, encerrou a carreira definitivamente. Ela tentou se formar em Educação Física e não conseguiu, com alguns militares poderosos no meio esportivo e acadêmico interferindo contra ela.

Maria Irenice faleceu em um acidente de moto em 1981 – que causa controvérsia em pessoas próximas a ela até hoje – e acabou tendo o seu nome apagado sistematicamente no tempo, intencionalmente ou não, com pouquíssimas informações a respeito de vida e carreira sendo encontradas. Em 2016, um documentário de 30 minutos ‘Procura-se Irenice’ ajudou a resgatar a sua história, junto com as pesquisadoras do esporte Kátia Rúbio (USP) e Cláudia Farias (Unesa).

Irenice Maria Rodrigues foi homenageada por sua cidade natal, Itabirito (MG), onde passou a se realizar anualmente uma meia-maratona com o seu nome, para que seu nome e sua luta não sejam mais esquecidos.

Fontes:

Documentário “Procura-se Irenice’ https://www.youtube.com/watch?v=LpwI0SSQtPE

ICL notícias https://iclnoticias.com.br/a-atleta-brasileira-que-a-ditadura-apagou/

Prefeitura de Itabirito https://itabirito.mg.gov.br/noticia/meia-maratona-irenice-maria-rodrigues-sera-destaque-em-itabirito-no-dia-17-de-setembro/

Arquivo do Jornal dos Sports acessados via https://memoria.bn.gov.br/

Senado federal https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/futebol-feminino-ja-foi-proibido-no-brasil-e-cpi-pediu-legalizacao

Esporte Rio https://esporterio.blogspot.com/2020/07/a-historia-de-irenice-rodrigues.html

Marcos Antonio

Marcos Antonio

Pai, Carioca, 40 anos, profissional de TI e cursando jornalismo. Um Fã de basquete e de todos os esportes olímpicos (e alguns não olímpicos também) que faz um trabalho de formiguinha para que todos eles tenham seu espaço. No Surto Olímpico desde 2012.
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